Há uma palavra que define este projecto, essa palavra é urgência.
Urgência em criar, produzir, mostrar, os tempos que vivemos exigem-no. Este é um projecto colectivo iniciado pelo Fernando Mota e pela Violeta Mandillo ao qual me juntei, por convite, uns tempos depois. Foi-me proposto realizar sete pequenos filmes, cada filme para um poema de um poeta português. A palavra escrita encerra em si mesma uma ideia que não necessita de um complemento sonoro ou visual, o que nos propusemos como princípio criador era fazer um trabalho colectivo à volta dessas palavras e ideias. Os sons seriam captados nos locais onde iríamos filmar para posteriormente o Fernando criar músicas e espaços sonoros que serviriam de base de montagem para os filmes. Partíamos sem guião acreditando que a nossa sensibilidade nos conduziria. Estes filmes não pretendiam ser uma ilustração das palavras dos poetas, longe disso, seriam apenas o nosso registo como criadores, umas vezes mais descritivos do momento que se vivia outras mais livres e experimentais. Um risco inteiramente assumido. Como e porquê acrescentar às palavras, esta é a pergunta que me coloco todos os dias, o caminho que encontrei é o da sensibilidade e simplicidade. Mário Melo Costa
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Chegámos aos terrenos em volta das ruínas do Convento de Monfurado já depois das 18h e não teríamos muitas horas para filmar antes do sol se pôr. Por isso o Mário Melo Costa e o José Manuel Rodrigues começaram logo por filmar a paisagem, o montado alentejano que não poderia nunca faltar neste projecto. O José Grossinho levou o Zoom H5 e subiu o monte para gravar o ambiente e eu aproximei-me de um dos dois sobreiros mortos que tinha visto no caminho. Tenho trazido sempre na bagagem pinos de afinação de cítara, cordas de viola braguesa, parafusos, ferramentas e um punhado de microfones piezo-eléctricos para o que der e vier, na esperança que num dos lugares onde filmemos encontre um ramo, uma árvore já morta, onde possa construír uma cítara impromptu, um qualquer instrumento efémero que possa originar a banda sonora para um destes filmes. Por ironia, alinhamento dos astros ou pura coincidência foi no filme que tinha o guião mais em aberto, menos planeado, que tal aconteceu. Enquanto os meus companheiros filmavam e gravavam a paisagem, eu furava o tronco de um dos sobreiros caídos e desenraízados, esticava cordas e usava os ramos da própria árvore como pontes. Criei duas cítaras, uma de seis cordas e outra de três, afinei-as numa escala com um "sabor" um pouco oriental, que me pareceu adequado ao texto que entrará no filme e comecei a improvisar algumas melodias e elementos rítmicos e harmónicos com os dedos, pauzinhos chineses e arco de violino. Entretanto o Grossinho regressara e ajudara-me a amplificar os instrumentos e o Mário e o José Manuel começaram a filmar o resultado da minha construção. Chegando a noite e os grilos, regressámos. Se algum dia passarem perto do Convento de Monfurado, entre Montemor-o-Novo e Escoural, olhem para o lado esquerdo do caminho de terra batida. Se virem um sobreiro caído talvez ainda lá tenha duas cítaras... Fernando Mota fotos © Mário Melo Costa
Quanto mais avançamos mais sinto que este projecto é sobretudo sobre a vulnerabilidade. A da nossa espécie. A dos nossos corpos. Das nossas vidas. Da construção a que chamamos de sociedade. Começa por ser inspirado pela pandemia, pela quarentena, pelo que queremos, sabemos ou conseguiremos fazer deste Mundo. Depois os instrumentos e objectos sonoros que estou a criar para estas viagens são feitos a partir de matérias orgânicas e naturais, em constante mutação pela acção da temperatura, humidade, sempre no limiar de (des)afinarem, de se desconjuntarem ao mínimo movimento. E depois as vozes, dos poetas, dos actores, vozes que habitam corpos que tentam voar mais longe, mais alto. E que caem. E que voltam a levantar-se. E a voar. E a caír. Estas filmagens num ferro velho foram uma grande aprendizagem. Na dificuldade em fazer música com instrumentos que não existem. Que são sucata. Materiais rejeitados. Metal retorcido. Onde está a música? Onde está a beleza? (Quase como pergunta um dos poemas...) Aqui. Fernando Mota P.S.: Este filme foi rodado no Recife Além, com a simpática colaboração de Rui Além e o apoio de https://www.ninhosaloio.pt fotos © Mário Melo Costa
O texto que se segue é uma carta que enviei ao Teatro de Montemuro para assinalar os 30 anos da Companhia, com a qual tenho tido o prazer e honra de colaborar em diversos contextos e circunstâncias. Achámos que era relevante para este diário de bordo, uma vez que o que conto nela se cruza com o contexto deste projecto. Já apresentei uma série de espectáculos meus no Altitudes, já criei algumas bandas sonoras para as criações do Teatro de Montemuro, mas da última vez que aí estive, a finalizar a música do Germinação em Fevereiro de 2020, mesmo antes de estourar a pandemia, trouxe daí uma coisa que nunca antes sonhei que fosse possível. Duas árvores. Duas pequenas árvores. Na verdade, dois carvalhos. Quando contei ao Eduardo que estava a desenhar uns instrumentos musicais criados a partir de ramos e árvores, ele logo me disse "Ó amigo, tenho imensos carvalhos que tenho de cortar! Vamos lá e levas os que conseguires enfiar no teu carro." Enquanto trocávamos histórias sobre os nossos meniscos (o meu joelho esquerdo estava nesse momento a uma semana de ser operado), subimos a pé o monte até ao sítio onde ele tinha os carvalhos. Enquanto eu reclamava que devia ser eu a cortá-los, o Eduardo insistiu em descer ao terreno e cortar dois belos pequenos carvalhos. "Ó Fernando, tu está aí quietinho que tens de proteger o teu joelho!". E assim descemos monte abaixo, cada um de nós com um carvalho às costas. Em chegando ao Teatro Montemuro, muita galhofa ouvi acerca deste lisboeta que vai à serra roubar carvalhos. Atando as árvores com cuidado, enfiei-as no meu Renault Scenic. Um ramo cortado aqui, outro ali, couberam mesmo à justa. Entretanto estreávamos o Germinação, e bem, regressava a Lisboa, operava o meu joelho, e bem; começava a pandemia, ficávamos em quarentena, eu em dupla quarentena, já que estava de canadianas. E os carvalhos à espera, no meu estúdio. À espera que o meu joelho melhorasse. À espera que eu saísse de casa. Que saíssemos todos das nossas casas. Enquanto não podíamos fazer espectáculos, eu sonhava outros projectos. E todos eles envolviam instrumentos-árvores. Entretanto saímos de casa e a primeira coisa que fiz foi esta Hárvore, metade árvore - metade harpa, que acabei de filmar num outro monte, em Vila Velha de Rodão (terra dos meus pais) nas Portas de Rodão. Será o primeiro de 7 pequenos filmes que compõem os 7 Poemas para um Mundo Novo, um projecto que nasceu da pandemia. Na verdade, um projecto que nasceu ainda em Montemuro, sem eu saber. Aquelas árvores foram a semente de muito do que farei nos próximos tempos. Germinações... Essa terra é mesmo boa, Eduardo! Essa terra é mesmo fértil, companheiros! Um grande bem haja a todos vocês por tudo que que têm plantado nestes 30 anos. Teatro, memórias, afectos, partilhas. Que venham muitos mais! Até já. Grande abraço fraterno, Fernando Mota foto © fm
No primeiro filme a ser rodado fomos a um local muito especial para mim. A terra dos meus pais. Há anos que lá não ia. Depois de ter perdido os meus avós, o sítio tinha-se esvaziado de sentido para mim. Foi, por isso, uma viagem com tanta descoberta quanto nostalgia. Recuperei a bigorna de sapateiro do meu avô Raimundo bem como outros objectos de família. Por coincidência ou não, dei com um livro também do meu avô, um manual escolar da quarta classe de Botânica e Agricultura. Dado que estamos a trabalhar com elementos da Natureza, pareceu-me que estava lá à espera que eu voltasse para me confirmar a pertinência deste projecto e desta pesquisa. No dia 21 de Julho, ao final da tarde, filmámos no rio Tejo, atravessando de barco as Portas de Ródão e avistando uma série de grifos, espécie de abutres maiores que as águias que voam entre os rochedos deste local. Foi uma aventura conseguir equilibrar e conseguir tocar a Hárvore (instrumento musical: árvore + harpa) no barco. Mas foi uma bela viagem encerrada com uma recompensa: uma bela sopa de peixe no Restaurante do Vasco. Na madrugada seguinte subimos ao Castelo do Rei Vamba e fomos presenteados ao nascer do sol com uma bela neblina sobre os rochedos das Portas de Ródão. Um pouco abaixo do miradouro conseguimos equilibrar (praticamente?) a Hárvore e filmámos durante as horas que o calor permitiu. De regresso a Lisboa, ainda conseguimos visitar um dos próximos locais de filmagem... Fernando Mota fotos © Mário Melo Costa
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